portuguese / english

25 de abril de 2019

piloto automático

uma curta motivação

Você olha no calendário. Já estamos em maio, e o ano parece que começou ontem. Uma pontada de medo perfura o seu peito. Caralho, maio? Onde o tempo foi parar?

Com o passar dos anos, eu sinto isso com cada vez mais frequência. Acordo, pisco, faculdade, pisco, almoço, pisco, vou pra casa, pisco, durmo, pisco, acordo. Às vezes sinto como se minha vida estivesse vivendo sem me avisar. Alguém me pergunta: “o que você está pensando?”, e demoro alguns segundos pra responder, “não faço ideia”.

A minha impressão é que isso é um sentimento comum, que todo mundo sente em algum nível. Mesmo assim, eu sinto que não deveria ser normal. Eu acredito que deve existir alguma coisa melhor do que isso. Nos últimos tempos, essa tem sido a minha jornada: descobrir técnicas para viver menos no piloto automático. Psicanálise, zen-budismo, crossfit, power metal, anime… Alguém deve ter a resposta.

o piloto automático

“Stop and smell the roses.”

“Devia ter me importado menos
Com os problemas pequenos

O acaso vai me proteger
enquanto eu andar distraído”
– “Epitáfio”, Titãs

“You are young and life is long and there is time to kill today,
and then one day you find ten years have got behind you”
– “Time”, Pink Floyd

“Life moves pretty fast. If you don’t stop and look around once in awhile, you could miss it.”
– Ferris Bueller

“And you may find yourself in a beautiful house
With a beautiful wife
And you may ask yourself:
Well, how did I get here?”
– “Once in a Lifetime”, Talking Heads

Todo mundo chama esse estado mental de um jeito diferente. Eu gosto de chamar de piloto automático.

Imagina um avião com dois pilotos: o piloto humano e o piloto automático. O piloto humano, por ser inteligente e criativo, é o responsável pelas tarefas “complicadas”. Ele cuida do pouso e da decolagem, e é o cara que você quer chamar quando der algum problema. Todo mundo acha ele o máximo! O piloto automático, por outro lado, é o responsável pelas tarefas “mecânicas”, como apertar o acelerador e segurar o volante. Ele é um robôzinho bem quieto, mas que dá conta do recado. Ele raramente erra e termina suas tarefas bem rápido - desde que sejam simples. Apesar do piloto humano ser bem mais inteligente, quem cuida mais do vôo é o piloto automático, já que normalmente não tem muita coisa a ser feita além de manter o avião no percurso - uma tarefa bem simples que é moleza pro piloto automático. O piloto humano teoricamente também poderia fazer isso, mas ele é meio preguiçoso, então prefere deixar o trabalho pros outros e dar em cima das aeromoças.

Podemos entender a mente humana nos mesmos termos. Nós somos o avião, que em um dado momento está sendo controlado pelos dois pilotos. O piloto humano é a consciência: responsável por perceber a passagem do tempo, por refletir sobre a nossa vida, por preencher o formulário do imposto de renda, e por calcular 189 + 467. Ela sempre está lá, mas às vezes fica nos bastidores sem fazer muita coisa. Já o piloto automático é a inconsciência: responsável por detectar se um objeto está mais perto que outro, por escovar os dentes e por calcular 2 + 2. Ela faz coisas muito rápido, desde que não sejam muito complicadas, e é muito boa para tomar decisões simples. É claro que a realidade é bem diferente disso, mas é uma analogia que funciona.

(Talvez seja útil comentar que alguns chamam essa divisão de System 1-System 21, ou de “níveis de consciência”2. Outros não falam de piloto automático, mas sim de hábitos3. No fundo, é tudo a mesma coisa.)

Podemos ver a dinâmica entre esses dois agentes como uma escala que vai de “inconsciente” pra “consciente”.

Essa escala é cheia de pegadinhas.

Como com muitas coisas da vida, nós raramente estamos em um dos extremos - normalmente estamos em algum ponto do meio. O mais próximo que chegamos de um extremo é quando estamos desmaiados ou dormindo, pois não há nenhuma sensação de “consciência” ativa - nesse caso estamos bem próximos do lado esquerdo. Mas é difícil imaginar como seria estar totalmente do lado direito… Se o lado esquerdo é estar dormindo, o lado direito seria estar totalmente acordado (deve ter alguma música do Raul Seixas sobre isso).

Também não é verdade que em um dado momento estamos em um único ponto dessa escala. Quando estamos acordados, normalmente estamos usando o piloto automático para algumas atividades e o piloto humano para outras, como veremos mais pra frente.

Ainda assim, a escala é útil.

Em termos dessa escala, nosso objetivo é arranjar formas de nos movermos do lado esquerdo para o lado direito quando quisermos. Inicialmente, eu achei que o meu objetivo era sempre estar do lado direito, mas isso é (1) impossível, e (2) indesejado. Para entender isso, precisamos entender melhor a dinâmica entre os dois pilotos.

Vamos mergulhar num exemplo concreto. Você consegue se lembrar da primeira vez em que pegou um ônibus sozinho? Se sua experiência foi como a minha, ela foi digna de nota. Tudo era novo e imprevisível, e perguntas de todos os tipos passavam pela sua cabeça: onde será que eu sento? Como vou saber que o meu ponto está chegando? E se eu fizer sinal e o ônibus não parar? Quando você finalmente senta e olha pela janela, nada te escapa. Cada rua, cada sinal, cada posto de gasolina, shopping e igreja são absorvidos pelos seus olhos famintos e curiosos. A sua atenção é total. Se alguém te perguntasse sobre como tinha sido andar de ônibus sozinho pela primeira vez, você poderia escrever facilmente uma dissertação de 40 páginas.

E como você pega ônibus hoje, depois de todos esses anos? Eu aposto que de forma muito menos atenta. Se você for como eu, você entra, escolhe um lugar, pisca e opa já chegou meu ponto valeu piloto. Se te perguntassem o que você tanto pensou durante a viagem, a resposta seria confusa. Você lembra de pontos isolados: com quem conversou no WhatsApp, que álbum ouviu, ou o que assistiu no YouTube. Mas são memórias desconectadas, pois você estava no ônibus só de corpo, não de espírito. Para todas as causas e efeitos, é como se você tivesse apertado Start e pulado a cutscene.

Da primeira vez, consciente. Agora, inconsciente. O que houve?

A palavra-chave é: novidade. O piloto humano é bom para lidar com situações novas, já que ele é inteligente e criativo. Quando o avião - você - está passando por algo inédito, o piloto humano é chamado para avaliar a situação e decidir qual o curso de ações que deve ser tomado. Mas assim como na vida real, ele prefere dar em cima das aeromoças, então está sempre procurando formas de deixar o piloto automático tomar conta do avião. Assim que a situação nova está sob controle, ele começa a escrever um manual de instruções detalhando tudo o que ele fez. Nesse exemplo em específico, ele detalha como entregar o dinheiro pro cobrador, como reconhecer que seu ponto está chegando, o que fazer quando o motorista passa do seu ponto… Em pouco tempo ele escreve um grande manual de instruções entitulado “COMO PEGAR UM ÔNIBUS SOZINHO”, e depois que ele termina, ele entrega o manual pro piloto automático e diz: “olha, da próxima vez que o avião pegar um ônibus, faz exatamente o que tá nesse manual. Se acontecer algo diferente, você me chama, ok?”. E ele volta pra sua paquera.

Caso algo genuinamente novo aconteça - como por exemplo se o ônibus for assaltado -, o piloto automático emite um alerta e o piloto humano toma conta do avião. Ele cuida da situação nova, e depois escreve um apêndice (“APÊNDICE 1: COMO SER ASSALTADO”). Das próximas vezes que o avião sofrer um assalto, talvez o piloto humano nem seja chamado! (vivendo no Rio de Janeiro você se acostuma com qualquer coisa).

Esse é o processo de aprendizado: fazemos tarefas conscientemente repetidas vezes até que sejamos capazes de executá-las inconscientemente. É o piloto humano escrevendo manuais pro piloto automático. E adivinha só: quanto mais vivemos, mais manuais estão escritos, mais aprendizado nós acumulamos. O piloto humano é chamado cada vez menos, e passamos cada vez mais tempo do lado esquerdo da escala, “dormindo”. Como há uma forte relação entre a percepção temporal e a consciência, os anos passam cada vez mais rápido.

É assim que o piloto automático toma conta das nossas vidas: simplesmente aprendemos a viver.

Ok, o piloto automático é a consequência do aprendizado. Se ísso for verdade, se livrar dele parece impossível. Mas será que seria desejável? Ou seja, agora que entendemos melhor como ele funciona, precisamos nos perguntar: (1) ele é do mal?, e (2) ele é do bem?

o caso a favor

Se o piloto automático é um sinal de que aprendemos algo novo, como podemos dizer que ele é ruim? A resposta: ele não é. Muitas das nossas alegrias só são possíveis graças à existência dele:

  1. Paralelização. No início, dirigir é impossível: você tem que dar atenção a tantas coisas ao mesmo tempo (embreagem, retrovisor, volante, freio, acelerador, marcha, pedestre, sinal, radar, blitz, vodka, batida, hospital, briga, divórcio) que parece que sua cabeça vai explodir. É uma das últimas competências motoras complexas que muitos de nós aprendemos, mas quando aprendemos, dirigir vira algo totalmente automático: subimos ladeiras, fazemos curvas e estacionamos sem muita dificuldade. Graças a essa internalização inconsciente, as viagens de carro adquirem o potencial de serem muito mais agradáveis, pois podemos prestar menos atenção na estrada e mais atenção em outras atividades mais significativas, como ouvir rádio ou conversar com um colega. Nesse caso, o piloto automático nos permite paralelizar atividades desinteressantes com atividades interessantes.

  2. Composição. Você está experienciando isso nesse exato momento. Conforme você lê esse texto, seus olhos passam pela tela e seu cérebro engaja com as ideias que o texto apresenta. Mas quantas atividades estão sendo automatizadas para que a leitura flua? Basta pensar nas atividades que os bebês aprendem: identificar letras e sílabas, entender o que as palavras significam, compreender a estrutura das frases e engajar com ideias. A parte interessante só ocorre de forma tão natural porque as camadas mais simples são executadas pelo piloto automático!

  3. Realocação de energia mental. Existe muita controvérsia a respeito do quão real é a teoria de ego depletion - a ideia de que alguns processos cognitivos utilizam recursos mentais que são esgotáveis. Mesmo assim, a ideia mais básica permanece razoável: pensar cansa, e se pensamos muito em X, temos menos energia para pensar em Y. Se isso for verdade e “energia mental” realmente for um recurso esgotável, então faz sentido utilizarmos o piloto automático nas tarefas mais “supérfluas” e o piloto humano nas tarefas mais significativas. Essa é a ideia por trás da história de que Einstein usava o mesmo terno todos os dias (ele preferia poupar o cérebro pra pensar sobre física), e também é uma das ideias centrais no campo recente de formação de hábitos.

Como podemos olhar para esses processos e dizer que o piloto automático é malvado? É impossível. Se livrar dele é algo indesejado, pois ele faz parte essencial de uma vida humana saudável. Sem ele, não conseguiríamos fazer quase nada!

o caso contra

Aprender é legal, mas a verdade é que existem muitas coisas na vida que nunca devem ser aprendidas. Quando elas são aprendidas, é porque estamos fazendo algo errado. Conversar com alguém, por exemplo, pode ser automatizado da seguinte forma:

  1. Você fala alguma coisa.
  2. Espera a outra pessoa terminar de falar (Dica: Não preste atenção no que ela está falando. Use esse tempo pra ficar pensando no que você vai dizer em seguida.)
  3. Fale o que você pensou.
  4. Volte ao passo 2, até que a conversa se encerre.

Meio egocêntrico, não é? Mesmo assim, eu te garanto que você vai chegar bem longe com esse processo, e te garanto que é o que muitas pessoas fazem (eu mesmo, inconscientemente! e aposto que você também, pelo menos de vez em quando!). Realmente ouvir o próximo e pensar no que ele diz é uma atividade totalmente do piloto humano, e nunca do piloto automático. Portanto, ela nunca pode ser de fato aprendida. Mas o piloto humano é preguiçoso e acaba dando um jeito de automatizar a tarefa, e acabamos usando algum processo como o acima.

O quão irõnico é que o processo que nos permite conversar com os outros é o mesmo processo que nos faz não prestar atenção no que eles falam?

Essa questão do aprendizado rapidamente forma uma bola de neve que afeta todo o resto. Transformamos tantas coisas em processos simples, egocêntricos e automatizáveis como o acima que acabamos sendo mais irritáveis e egoístas. Tudo se torna um obstáculo. Perdemos contato com a nossa própria mortalidade e acabamos sendo levados pelas besteiras do cotidiano. Nos estressamos mais, tratamos todo mundo pior, e em geral achamos que tudo será eterno4. Quantos filmes de Hollywood são sobre isso?5

Além disso, vivendo no piloto automático, também perdemos o controle das nossas vidas. Repetimos as mesmas decisões, dia após dia, sem nos questionarmos se elas ainda fazem sentido. Estamos seguindo as instruções deixadas pelas nossas versões de décadas atrás. É como deixar o barco à deriva e esperar que ele chegue no lugar certo: não é um bom plano. Atingir os nossos objetivos requer que estejamos alertas ao caminho que a nossa vida está tomando, e pensar criticamente se isso é o que queremos. Ou seja, requer que estejamos conscientes. O piloto humano é ativo, e o piloto automático é reativo.

No piloto automático, a vida simplesmente escorre por entre os nossos dedos. Não tem como esconder.

o resultado do júri

Como conciliar essas duas visões do piloto automático? Por um lado, ele nos permite aprender coisas. Por outro, ele aprende coisas demais.

Nesse sentido, o piloto automático é como um Gremlin: começa todo fofo e amigo, mas inevitavelmente alguém o alimenta errado e ele foge do controle de todos, devorando a sua vida por completo. Aprender coisas e fazer elas no automático é sem dúvida importante, mas a partir do momento em que não escolhemos o que aprender, temos uma receita para um desastre. Logo logo automatizamos tudo, e olhamos no calendário e caralho já é maio?

O piloto automático deve ser reconhecido simultaneamente como um aliado importante e um inimigo perigoso. Para viver de forma saudável, é preciso mantê-lo sob controle com uma coleira e uma mordaça.

Como?

Essa é a pergunta de um milhão de dólares.


leituras relacionadas

This is Water”, David Foster Wallace
O melhor manifesto para uma vida “acordada” que eu poderia imaginar. Sincero e poderoso, é o texto que eu recorro quando parece que eu nunca vou conseguir acordar de novo. Eu recomendo essa versão primeiro.

How To Live On 24 Hours A Day”, Arnold Bennett
Também é um texto mais motivacional, embora tenha instruções práticas de como aplicar certas coisas. Gosto muito, e frequentemente releio. Tem uma versão online aqui.

Why Don’t Students Like School?”, Daniel Willingham
Especificamente o capítulo 1. Entra muito mais em detalhes sobre como o piloto automático funciona de fato no cérebro humano, especialmente em termos de memória.

Thinking Fast and Slow”, Daniel Kahneman
Chama o piloto automático e o piloto humano de System 1 e System 2. Explora melhor o que cada um dos sistemas consegue ou não fazer, e fala especificamente sobre como o piloto automático é mais suscetível a vieses e a tomada de decisões “irracionais”. O livro em si eu achei meio chato, mas há quem goste.


notas

  1. “Thinking Fast and Slow”, Daniel Kahneman.

  2. Religion for the Nonreligious”, Tim Urban (waitbutwhy).

  3. Estou pensando especificamente em “The Power of Habit”, de Charles Duhigg.

  4. Tem um texto sobre isso que eu recomendo fortemente: “This is Water”. Ver leituras relacionadas para mais detalhes.

  5. No mínimo, o melhor filme de todos os tempos, popularmente conhecido como ‘Click’.