esse texto é bem mais pessoal do que meus outros textos. por motivos óbvios, eu me sinto mais à vontade escrevendo publicamente sobre jogos do que sobre minhas ansiedades. mas chega um certo ponto em que não escrever sobre essas coisas só me parece... enganador, traiçoeiro. porque são esses os temas que dominam meus pensamentos, e é esse o tipo de discussão que realmente me impacta. então sei lá. talvez ajude alguém

27 de março de 2021

já fazem anos que eu não tomo banho

ou, o que eu quero dizer quando digo que não estou aqui


uma das primeiras coisas que fiz hoje de manhã foi tomar banho. pra mim, "tomar banho" consiste em ensaboar o meu corpo, entrar debaixo do chuveiro, abrir a torneira, passar shampoo, tirar o shampoo, às vezes passar condicionador, dentre outras coisas. é a mesma sequência de ações que eu faço desde que me entendo por gente, e hoje não foi diferente.

hoje eu tomei banho. mas, se você me pedisse pra te contar algo que aconteceu durante o banho, eu teria muita dificuldade. é claro, eu sei que eu tomei banho, então eu certamente me ensaboei e passei shampoo e tudo o mais... mas eu não me lembro especificamente de estar fazendo essas coisas. eu não me lembro de ter pensado "agora vou passar o shampoo", ou "agora vou desligar a torneira", ou qualquer coisa do tipo. eu não conseguiria me lembrar disso nem que você me pagasse, porque esses pensamentos simplesmente não existiram enquanto eu estava tomando banho. foi totalmente automático, e eu não formei memória nenhuma.

isso me incomoda bastante.

não é a falta de memória no chuveiro que me incomoda. se essa amnésia se restringisse ao espaço entre os azulejos e o box, eu certamente não estaria aqui escrevendo isso. o problema é que esse manto de inconsciência se espalha por todo o meu dia, embaçando tudo que eu faço. eu termino de lavar a louça e não me lembro de ter lavado a louça. eu termino de subir as escadas e não me lembro de ter subido no primeiro degrau. ou então eu desligo a luz do quarto e tenho dificuldades de facilmente identificar o que fiz durante o dia. é claro que eu consigo dar respostas imediatas pra essas coisas - não é literalmente amnésia -, mas eu sempre falho em tornar a fala concreta. "o que você pensava enquanto subia os degraus?", ou "como foi a experiência de lavar a louça?".

eu sinto como se meu corpo estivesse vivendo sem me avisar.

se você não sente isso, não precisa continuar lendo. o resto do texto é só um relato do que eu aprendi até agora, tentando decifrar esse sentimento e como lidar com ele. nas palavras de Arnold Bennett:

"Meanwhile, [...], I will continue to chat with my companions in distress — that innumerable band of souls who are haunted, more or less painfully, by the feeling that the years slip by, and slip by, and slip by, and that they have not yet been able to get their lives into proper working order."

dito isso, eu tenho plena noção de que nem toda memória é consciente1, e que "memória" talvez não seja um parâmetro razoável pra medir se uma experiência foi boa ou não (o que quer que isso signifique). mas ainda assim, esse incômodo especifico com memórias foi o que me fez começar a pesquisar mais sobre essas... [gesticula abstratamente] ...coisas.

o que eu vim a descobrir é que a razão por trás dessa amnesia tem a ver com atenção. correndo o risco de dizer algo óbvio, eu não lembro de ter pensado "agora vou passar o shampoo" porque eu literalmente não tive esse pensamento: eu já tomei banho tantas vezes que meu cérebro automatizou o processo2, e meu corpo consegue se ensaboar e etc com pouca ou nenhuma intervenção da minha mente consciente. se algo excepcional tivesse acontecido (p.ex.: se a água tivesse acabado), a história teria sido bem diferente: minha atenção se voltaria ao problema e eu tentaria - conscientemente - resolvê-lo. mas como por definição coisas excepcionais acontecem excepcionalmente, na maior parte dos dias minha atenção está liberada pra se preocupar com literalmente qualquer outra coisa sem ser "tomar banho".

em "Why Don't Students Like School?", o cientista cognitivo Daniel Willingham sintetiza isso numa única frase: "memória é o resíduo do pensamento".

"Suppose you are walking the halls of your school and you see a student muttering to himself in front of his open locker. You can't hear what he's saying, but you can tell from his tone that he's angry. There are several things you could focus on. You could think about the sound of the student's voice, you could focus on how he looks, or you could think about the meaning of the incident (why the student might be angry, whether you should speak to him, and so on). These thoughts will lead to different memories of the event the next day. If you thought only about the sound of the student's voice, the next day you'd probably remember that sound quite well but not his appearance. If you focused on visual details, then that's what you'd remember the next day, not what the student's voice sounded like. [...] Whatever you think about, that's what you remember. Memory is the residue if thought."

então ok, eu não me lembro de tomar banho porque eu não estava prestando atenção no banho, e eu não estava prestando atenção no banho porque meu cérebro já aperfeiçou o conceito de tomar banho3. duas perguntas surgem, então: (1) no que eu estava pensando?, e (2) eu quero tanto assim pensar no meu banho?

a primeira pergunta primeiro. eu disse que durante o banho, meu cérebro pensava em "literalmente qualquer outra coisa"; em termos científicos, diria-se que meu cérebro ativava a Rede Neural Padrão4 (DMN, ou Default Mode Network): uma rede cerebral cujos objetivos envolvem majoritariamente (1) pensar no passado, e (2) imaginar o futuro. sobre o passado, remoemos memórias emocionalmente intensas, conversas que poderiam ter acontecido de outro jeito, eventos que até agora não foram digeridos por completo; sobre o futuro, pensamos na reunião de amanhã, na segunda-feira iminente, no que faremos caso o dinheiro fique curto no mês que vem. tenho certeza que qualquer um consegue completar com seus próprios exemplos, talvez até mesmo do dia de hoje.

tão interessante quanto o conteúdo dos pensamentos da rede padrão, é o formato dos pensamentos que ela gera. pra desativar a rede padrão, basta se concentrar em alguma coisa que requisite sua atenção, como por exemplo malabarismo ou palavras-cruzadas (um dos motivos pelos quais essa rede também foi chamada de "task-negative network", porque é ativada quando nenhuma tarefa requer nossa atenção). isso mostra que os pensamentos da rede padrão não são focados e intencionais (como os que teríamos ao tentar resolver um problema novo), mas sim difusos e associativos (como os que temos quando estamos caminhando na nossa rua pela milésima vez). nesse sentido, é muito interessante que esse estado seja normalmente chamado de daydreaming: estamos acordados, porém inconscientes.

e assim como num sonho há a dificuldade de diferenciar o real do imaginário, há também na rede padrão uma dificuldade de diferenciar o pensamento da realidade. a partir dessa realização, surge a resposta pra segunda pergunta: "por que eu iria querer pensar no meu banho?".

a questão não é se você quer prestar atenção no banho ou não. a questão é: você conseguiria prestar atenção no banho, se quisesse?

eu te imploro que tente. da próxima vez que for tomar banho, tente prestar atenção nos seus movimentos, na água escorrendo pelo seu corpo, na textura do seu cabelo quando passa o shampoo. no formato da torneira, no som dos pingos batendo no chão. leve a sério!! não é como se faltassem coisas pra se prestar atenção! experiencie o banho como uma criança tomando banho pela primeira vez, sem expectativas, sem rotular os objetos, sem nenhuma pré-concepção do que são as coisas. só tenta.

eu chuto que vai ser bem difícil. tipo, impossível. você pode até começar bem, mas em algum momento você vai ter algum pensamento que parece mais importante, provavelmente envolvendo algum outro lugar e algum outro momento. um vídeo que você viu no youtube, ou planos sobre o dia que virá. isso é o seu cérebro gradualmente ativando a rede padrão, porque ele percebeu que não tem nada de particularmente interessante no seu banho. e talvez não tenha mesmo! talvez seja só um banho, uma tarefa rotineira digna de ser ignorada. mas responda: você escolheu esse pensamento? você decidiu pensar sobre outra coisa? ou é algo fora do seu controle? tente ignorar esse pensamento e prestar atenção no banho de novo. você consegue?

eu tenho muita dificuldade.

a consciência humana tende ao inconsciente. isso pode parecer um ponto trivial, uma curiosidade qualquer sobre o cérebro humano, como uma lista de vieses cognitivos na wikipédia... mas na verdade, eu vim a descobrir que é o mecanismo psicológico por trás de boa parte das minhas ansiedades.

vamos supôr que eu tenho uma reunião importante amanhã. invariavelmente, pensamentos sobre essa reunião acabam invadindo minha mente ao longo do dia, surgindo nos mais diversos momentos: quando estou estudando, conversando com amigos, dormindo (!), ou é claro, quando estou tomando banho. qual o conteúdo desses pensamentos? eu imagino acontecimentos possíveis: perguntas que podem me fazer e como eu responderia a elas, problemas técnicos que podem surgir e como eu poderia consertá-los rapidamente... e eu também começo a pensar em como as coisas podem dar errado: se for uma prova da faculdade, eu começo a me imaginar tirando uma nota ruim e sendo reprovado, sendo "deixado pra trás" pelos meus colegas e tendo que estudar pra prova final... se for uma entrevista de emprego, eu começo a me imaginar falando alguma besteira e tendo meu currículo rejeitado, e então eu precisaria arranjar algum outro emprego, mas e se eu não conseguisse arranjar nenhum emprego? eu não teria dinheiro pra sustentar meus pais, e eles não iam ter um plano de saúde bom, e eles iam morrer, e a culpa ia ser minha e...

nas palavras de Twain: "I have been through some terrible things in my life, some of which actually happened."

ansiedade é uma merda, e em grande parte ela surge devido a essa incapacidade de separar o que é real do que é imaginado. 99% dos pensamentos ansiosos que eu tenho sobre o futuro jamais chegam a acontecer, mas no mundo maravilhoso da minha cabeça eles são tão reais que é como se eles estivessem acontecendo. de fato, meu coração palpita como se eles fossem reais, e é essa ilusão que motiva as minhas injeções aleatórias de cortisona ao longo do dia. em nenhum contexto isso é mais claro do que em apresentações públicas: eu sempre fico extremamente ansioso nos dias que antecedem a apresentação, mas durante a apresentação em si eu estou tão focado em apresentar que não sobra espaço mental pra ficar nervoso. ou seja, quando eu me concentro na apresentação a rede padrão é desativada, e é ela que traz a ansiedade.

é claro, isso não envolve só ansiedade: diversas outras condições psicológicas (como por exemplo, depressão) são oriundas dessa confusão entre o que é pensamento e o que é realidade. esse é o princípio por trás da terapia cognitivo-comportamental (CBT, ou cognitive-behavioral therapy)5, que é uma linha de psicoterapia que tem ganhado atenção nas últimas décadas. nesse tipo de terapia, o processo terapêutico envolve justamente aprender a identificar esses pensamentos e questioná-los racionalmente, percebendo o quão distantes da realidade eles realmente são. qual é realmente a chance de você falar alguma besteira durante a reunião? isso já aconteceu no passado? se isso acontecesse, será que seria tão catastrófico quanto você imagina? e assim por diante.

então se você é ansioso como eu, a sua dificuldade de prestar atenção nas coisas cotidianas é causada pelo mesmo mecanismo psicológico que te impede de identificar seus pensamentos como as ilusões que eles normalmente são. é a dificuldade de se tornar consciente dos seus pensamentos que te faz ser levado por eles. se você pudesse percebê-los com facilidade, então seria fácil!: toda vez que surgisse um pensamento ansioso, seria só pensar "não, isso provavelmente não vai acontecer, deixa eu pensar em outra coisa", e bola pra frente. mas é difícil. você acaba sendo levado pela fantasia, e quando percebe, o banho já acabou, e você não se lembra de nada.

mas e quando não estamos ansiosos? vamos supôr que você não está ansioso, que sua vida está às mil maravilhas e você não tem absolutamente nada com o que se preocupar no futuro próximo. nesse cenário, a rede padrão continua sendo ativada: você vai delegar o banho pro piloto automático e seus pensamentos vão naturalmente tender pro passado e pro futuro. a única diferença é que isso provavelmente não vai ser doloroso, ou seja, os pensamentos provavelmente vão ser tranquilos e não ansiosos. você pode ficar pensando em ideias pra um projeto criativo, por exemplo, ou analisando um filme ótimo que você assistiu. nessas circunstâncias, pode parecer que a rede padrão não é de todo ruim, afinal ela está te fazendo pensar em coisas bacanas não é mesmo? "o problema não é a rede padrão, mas sim meus pensamentos ansiosos!".

essa linha de raciocínio é uma armadilha. se a minha hipótese estiver correta, e a rede padrão for realmente o mecanismo psicológico por trás das ilusões que alimentam a ansiedade e outros desagrados psicológicos, então mesmo que seus pensamentos durante o banho sejam pacíficos, a questão se torna: você escolheu, conscientemente, esses pensamentos? ou você simplesmente se deixou levar por eles? se você se deixa levar por eles, então você está efetivamente treinando o seu cérebro a se render a quaisquer pensamentos que surjam, e assim você está preparando um terreno fértil pra que a ansiedade surja quando ela quiser surgir.

em outras palavras: você não pode alimentar o Gremlin enquanto ele é bonitinho e depois reclamar que ele te matou quando ficou com fome.

se eu foquei bastante em ansiedade até agora, é só porque esse é o meu maior demônio pessoal. ansiedade é apenas uma das consequências dessa tendência ao inconsciente. existem muitas outras formas através das quais esse mecanismo se estende invisivelmente pelas nossas vidas. exemplos óbvios são perder a paciência com um ente querido, julgar alguém de forma preconceituosa, ou até mesmo perdermos a esperança no futuro. em geral, todos os momentos em que reagimos inconscientemente ao invés de respondermos conscientemente são causados por essa mesma tendência de confundirmos nossos pensamentos com a realidade.

de certa forma, esse texto é um caminho longo e torto pra chegar na conclusão mais antiga possível: a única verdade que existe é o aqui e o agora. qualquer outra coisa, qualquer outro pensamento, é ilusório. o passado já passou, e o futuro só existe no mundo maravilhoso da sua cabeça. não existe reunião ou conversa ou qualquer outra coisa sem ser as quatro paredes do box e a água escorrendo pelo ralo.

eu quero continuar esse relato. eu quero dizer que as plataformas sociais de hoje em dia só pioram isso tudo, enquanto fragmentam nossa atenção e treinam nossa mente a pular de um pensamento pra outro. eu quero dizer que essa tendência ao inconsciente está intimamente relacionada com a noção de tédio, e que o segredo é perceber que nada é entediante. eu quero dizer que o processo de prestar atenção em coisas mundanas se chama meditação e existe uma tradição milenar que gira em torno disso e que você pode literalmente pesquisar sobre ela e começar a aproveitar o conhecimento de pessoas muito mais inteligentes que você que enfrentaram o mesmo problema ao longo de toda a história da humanidade.

mas acima de tudo, eu quero dizer que eu sinto isso tudo. e isso ainda não é verdade.

a única coisa que eu posso dizer agora é que eu tenho certeza de que esse é o problema mais importante da minha vida: o de como me manter consciente. talvez te interesse saber que há 4 anos atrás eu comecei o meu primeiro diário, e a primeira frase que escrevi foi: "os últimos dias foram inconscientes". talvez te interesse saber que eu escrevi a mesma frase segunda-feira passada. e talvez te interesse saber que, ainda assim, a certeza continua.

um dia quem sabe eu vou poder dizer todas essas coisas com confiança. mas por enquanto, eu continuo tentando tomar banho.


leituras relacionadas


notas

[^1]: eu me lembro de harry potter

[^2]: piloto automático

[^3]: especificamente meu cérebro automatizou o banho no meu banheiro, nas condições diárias nas quais eu usualmente tomo banho. se eu for na casa de um amigo tomar banho, é claro que aquilo vai necessitar provavelmente algum módico de atenção (onde fica o shampoo? como ponho a água numa temperatura agradável?). ou então, se eu quebrar a perna e tiver que tomar banho sem molhar o gesso, também vai haver um período de adaptação (como devo me posicionar? será que devo cobrir o gesso com algum material plástico?). ainda assim, depois que essas dificuldades iniciais forem ultrapassadas, o piloto automático pode voltar a trabalhar tranquilamente. o cara é esperto.

[^4]: wikipedia. se quiser ler mais sobre, recomendo o livro Why Buddhism Works de Robert Wright.

[^5]: wikipedia. se quiser ler mais sobre, recomendo o livro Feeling Good de David Burns


Comentários